rosaEsse pequeno texto é uma introdução ao tema. Pretendemos retomar os aspectos aqui colocados em textos subsequentes.

Resolvi elaborar uma série de pequenos artigos sobre a xenofobia antinordestina pós-eleitoral por obrigação profissional e moral.

Profissional porque sou professora de História e, em particular, de História do Brasil, desde os 18 anos de idade. Ainda nesse campo, porque, durante muitos anos, estudei o regionalismo nordestino. Moral porque, sendo estudiosa, professora e militante dos Direitos Humanos, não posso compactuar com preconceitos, segregações, desqualificações, de pessoas contra pessoas.

E o assustador é o que essa atitude odienta e preconceituosa revela de desestorização, ou falando mais claramente, de ignorância histórica.

O que configura a Xenofobia?

Imediatamente após os resultados eleitorais, começaram os ataques a nordestinos e escreveu-se no Facebook (e em outras redes) até em linchá-los.  Crime de ódio que foi e está sendo imediatamente denunciado às autoridades competentes pela OAB e por dezenas e dezenas de internautas. O paroxismo foi tanto que houve um determinado promotor público (!) que reiterou essas vociferações e foi advertido em pleno Facebook por sua mulher delegada que parasse com isso.  Ela sabe que é crime. Não vou citar nomes porque a figura é parente de parente meu e não pretendo abalar relações familiares da pessoa minha parente, embora ela  esteja indignada com  a atitude do nobre promotor.

Tais manifestações se configuram como xenofobia.

Xenofobia (do grego ξένος, translit. xénos: “estranho”; e φόβος, translit. phóbos: “medo.”) significa medo, aversão ou profunda antipatia a estrangeiros  ou a estranhos, ao que e/ou a quem é de fora de um país ou de um determinado grupo social ou de uma cultura, é uma reação do endogrupo ao exogrupo no jogo de reconhecimento, defesa e/ou preservação de identidades sociais (nacionais, grupais, étnico-culturais etc.).  Compreende as relações e as percepções do endogrupo em relação ao exogrupo, podendo abranger medo, suspeição, e extremar-se em agressão e desejo de extermínio do Outro. Engendra estereótipos desqualificadores do Outro e pode transformar-se em patologia individual e/ou coletiva, afetando os relacionamentos sociais.

A xenofobia, porque baseada no medo, não se fundamenta no conhecimento. Fundamenta-se no emocionalismo e não nas emoções ou sensibilidades. Fundamenta-se na irracionalidade e não na razão, a não ser que chamássemos de razão a sua visão estreita de mundo, que recusa a convivência na alteridade.

Começo pela visão maniqueísta do ataque xenófobo. No caso, pessoas do Sul/Sudeste contra (os) nordestinos (algumas generalizadoras, outras não). Um determinado grupo de autores e autoras dessas mensagens se arvorando portadores do Bem (porque eleitores de Aécio ou anti Dilma) contra os portadores do Mal (os eleitores de Dilma), que estaria(m) – o Mal e os eleitores – localizado(s) em uma região do país- o Nordeste – e os nela habitantes ou nascidos.

Tais mensagens odientas têm, por vezes, uma conotação religiosa e moralista, arrogando-se seus autores como donos da verdade (que, na visão deles, é única) e antiética porque um dos princípios centrais da Ética é o respeito à dignidade de toda pessoa.  Muito interessante de analisar isso porque várias dessas pessoas, com certeza, frequentam igrejas, vão a celebrações religiosas, como conheço vários casos, e pregam o ódio.

Essas pessoas tentaram construir aquilo que se chama bode expiatório. No caso, tentaram encontrar um bode expiatório para a derrota de seu candidato: o Nordeste (uma imagem estereotipada deste) e (os) nordestinos.  Isso aconteceu e acontece, ao longo da História, quando determinados grupos sociais se sentem ameaçados por mudanças históricas e encontram um “inimigo” para questões que não conseguem (ou não querem) compreender. Os judeus, tanto no período da Inquisição quanto durante o regime nazista, foram o bode expiatório da crise alemã depois da derrota do II Reich na 1ª Guerra Mundial.  Os negros têm sido bode expiatório de grupos brancos, de forma constante, na história mundial e brasileira. As mulheres o foram e são, os homossexuais foram também no nazismo e estão sendo na sociedade brasileira. Os grupos que se arrogam a verdade única, consideram-se superiores ou porque são escolarizados, mais bem dotados, mais inteligentes, se auto considerando mais civilizados.

O que tais grupos odientos não conseguem compreender é, nos mais variados períodos e contextos históricos, a presença do Outro. O Outro incomoda. Como diz a música de Caetano Veloso, “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. No caso, Narciso se acha bonito porque é branco, com razoável situação financeira, heterossexual, descendente de europeu (de preferência, não português), cristão.  Esse Outro quer falar, quer participar e, mais do que isso, quer ter direitos. Mas o Mesmo, o Eu do discurso dono da verdade, considera que os direitos são só para si. Não para o Outro.  Então, joga o jogo da Identidade do Eu, do Mesmo, do “Nós” contra o Outro, o diferente, o diverso.

Esses grupos que se postulam donos da verdade, da sabedoria, da inteligência, vão mais longe: no caso da xenofobia antinordestina, atribuem ao Outro (eleitores de Dilma/ nordestinos/ pobres) terem votado por interesse, e, em específico, nominaram o interesse pela Bolsa Família. Primeiramente, o “argumento” é risível: isto quer dizer que 24 milhões de pessoas do Norte e Nordeste que votaram em Dilma, têm Bolsa Família? Isto quer dizer que 26 milhões de pessoas do Sul e Sudeste que votaram em Dilma, têm Bolsa Família? Esse discurso seria até risível se não ocultasse algo muito sério: tentar desqualificar o Outro em sua legitimidade de ter interesses no processo eleitoral, passando uma imagem do Eu do discurso como desinteressado e votando sem interesse algum. Lançam seus anátemas (sim, porque esses grupos se julgam juízes da vida do Outro) e se calam sobre seus próprios interesses e sobre os interesses dos grandes grupos que financiam as campanhas eleitorais, aliás, de vários candidatos ao mesmo tempo. Abordarei essa questão com mais detalhes em outro artigo.

Vale lembrar alguns outros episódios correlacionados:

  • As atitudes odientas não foram apanágio apenas de eleitores aecistas. Aconteceram de vários lados. Mas foram visivelmente mais intensas contra o Nordeste e (os) nordestinos;
  • Essas atitudes já haviam acontecido em 2010, também contra o Nordeste e (os) nordestinos;
  • Essas atitudes haviam acontecido muito mais tempo antes já na campanha eleitoral de 1989, contra Lula, sob a capa de uma Imaginária “ameaça comunista”

Não considero tais episódios apenas conjunturais e passageiros.  São pontas de um iceberg de intolerância de uma sociedade que foi constituída historicamente com uma profunda mentalidade autoritária.

O jogo discursivo manipula a História. Oculta as Histórias: porque não há uma História única. Promove a desestorização e, portanto, a deseducação política.

Mas não representa apenas violência simbólica. Pode converter-se em violência concreta, física. Na eleição de 1989, em São Paulo, um casal jogou um cachorro para cima de uma amiga minha, professora da UFPB, e de seu marido, por estarem andando na rua com camisa do PT.

Pode converter-se, inclusive, como aconteceu na semana seguinte à eleição, em manifestações pela ditadura, pela ruptura do Estado de Direito.

Deixe um comentário