rosa

Professora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos,

Cidadania e Políticas Públicas da UFPB

Nos anos noventa, o educador norte-americano Michael Apple, em um livro intitulado Política Cultural, denunciava a composição de um bloco conservador que vinha assumindo a direção da sociedade em seu país. Este bloco era formado pelas grandes corporações multinacionais, o gerencialismo (os tecnocratas) e certos grupos religiosos.

Pois bem: o golpe dado no dia 17 de abril, contra o governo legítimo de Dilma Rousseff, evidencia que está sob a direção de um bloco muito similar no Brasil.

Quem faz parte do golpe?

  • parte da burguesia, encabeçada pela FIESP;
  • a bancada evangélica (eletrônica), expressa através de Eduardo Cunha;
  • a grande mídia;
  • parte dos segmentos médios urbanos; entre outros.

E… , muito provavelmente, o governo norte-americano.

A burguesia envolvida com o golpe tem um interesse direto em abocanhar mais recursos públicos ainda do que já abocanhou a vida toda na História do Brasil. Primeiramente, vamos relembrar: sempre foi uma farsa o discurso de “menos Estado, mais mercado”. A burguesia no Brasil sempre mamou nas tetas dos mais diversos governos. Nos governos de Lula e Dilma Rousseff, vários segmentos industriais (a exemplo do automobilístico e dos eletrodomésticos de linha branca, como fogões, geladeiras, máquinas de lavar etc) tiveram subsídios oficiais para expandir seus negócios. Sem falar nos altos lucros do setor bancário. Mas a voracidade do capitalismo é insaciável! E o que está em jogo neste golpe é, de um lado, abocanhar os recursos públicos alocados constitucionalmente para a Educação, a Saúde, a Previdência, a Cultura; e, de outro, empreender um amplo corte de direitos trabalhistas e previdenciários. É notório o que certos governos estão fazendo com a Educação > São Paulo, Paraná, Goiás, entre muitos, no sentido de terceirizar a educação, para rebaixar custos, e o poder público se desobrigar da sua obrigação constitucional de garantir direitos. Para isso, estão criminalizando os professores assim como outros movimentos sociais.

A bancada de certos segmentos evangélicos aparece como linha auxiliar, mas com uma importância enorme nesse projeto: tem seu próprio projeto de poder, veja-se Cunha acompanhado dos Malafaia, dos Edir Macedo, dos Feliciano. Segundo circula nas redes, Cunha financiou a campanha de mais de 100 deputados. E tenho cá minhas dúvidas se muitos segmentos do Judiciário não têm os seus rabos presos, embora muitos outros, é preciso ressalvar, tenham se manifestado pela democracia e contra o golpe. O projeto desses evangélicos vai mais longe: querem se hegemonizar ideologicamente sobre a sociedade brasileira. Não é de hoje que isto vem acontecendo. Quando da polêmica criação de Ensino Religioso nas escolas de Ensino Fundamental, houve até uma certa aliança entre segmentos evangélicos e segmentos católicos, querendo que o Estado Brasileiro custeasse as aulas dadas por pastores e padres. Na transação política havida, o Governo Lula não concordou com esse custeio e o resultado foi a esdrúxula medida de que o Ensino Religioso é obrigatório para as escolas, mas não para os alunos!!! Hoje, nos recentes acontecimentos, fica evidente que a cúpula da CNBB se afastou dessa aliança com essas alas evangélicas, mas isto não significa que não haja setores da Igreja Católica delas muito próximos em ideias. Mas outras evidências de que esses não desistiram dos seus intentos têm sido as contínuas notícias de violência contra as demais religiões, a exemplo de quebra de imagens católicas e, sobretudo, perseguições a professantes de religiões de matriz africana, destruindo terreiros, espancando pessoas (Bahia, Rio de Janeiro, João Pessoa) e até querendo impedir as baianas do Pelourinho da Bahia de usarem os seus trajes típicos. Essa violência tem se alastrado também contra homossexuais, travestis e demais transgêneros. Muitas evidências de incitação ao ódio contra as expressões de diversidades religiosas, étnicas, sexuais em direção à construção de uma hegemonia religiosa-ideológica.

Tanto procede esse projeto de poder que Cunha, hoje (19/04/2016), afoitamente, já declarou que não reconhece mais o governo Dilma, passando mais uma vez por cima da Constituição, uma vez que o processo de mpeachment não acabou.

A grande mídia. Três grupos de interesses a movem. Um, mais imediato, de cada grupo midiático em si (Globo, Band, Estadão, Folha de São Paulo, Veja, etc), é a junção de não querer pagar dívidas de impostos ao Governo Federal e voltar a ter verbas oficiais de publicidade, cortadas pelo governo Dilma. O segundo bloco de interesses concentra o que a mídia representa como parte da reprodução do sistema, através da veiculação de propaganda de mercadorias e propaganda ideológica. E o terceiro grupo de interesses está na ameaça que a grande mídia sente de uma regulação do setor. Ela não quer ter regras, como nos países mais desenvolvidos do mundo existe, quer correr solta e fazer o que está fazendo.

Segmentos de classes médias. Vamos recuperar na História do Brasil que parte delas sempre esteve atrelada às elites, sempre “olhou para cima” para imitar seu padrão e nunca “olhou para baixo” e nem teve sensibilidade diante das profundas desigualdades históricas deste país. Então, tais segmentos também são linha auxiliar da burguesia no sentido de reforçar uma secular cultura de privilégios, de desigualdades, de preconceitos, de discriminação. Tais segmentos destamparam as panelas em defesa da barbárie. A crítica aos governos Lula-Dilma sempre vem expressa nas bandeiras contra o Bolsa Família, contra as Cotas, e contra melhorias dos setores mais despossuídos. Enxergam o imediato, não olham o retrovisor da História: de que as classes médias tiveram e continuam tendo bolsas para Mestrado, Doutorado, Pós-Doutorado, Ciência Sem Fronteiras, Iniciação Científica etc etc, muito embora segmentos mais pobres hoje estejam acessando tais recursos, ainda que de forma minoritária. Reconhecendo que certas políticas do governo e posturas políticas do PT não diferiram de outros partidos, mas é inegável que várias políticas públicas dos governos petistas trouxeram um real avanço contras desigualdades e discriminações e não existiriam em um governo de centro-direita e menos ainda em um governo com as ideias da bancada evangélica.

Alguns segmentos de classes médias (e mesmo de pobres) acreditam que são gente de bem e que estão lutando contra a corrupção (e isso é importante) e que é possível tirar um por um os “corruptos”/bandidos e isso resolverá o problema. Enxergam o imediato da corrupção, mas não conseguem ir além desse estreito horizonte, vincado por um acentuado individualismo no caso de segmentos médios; ir além dos casos concretos que encarnam a corrupção. Não percebem que a corrupção é sistêmica ao capitalismo. Que a corrupção está intrinsecamente vinculada à disputa de recursos públicos pelas grandes empresas. Que o buraco é muito mais embaixo.

Mas, não! Sobretudo tais segmentos médios aliados da burguesia pisam nos despossuídos. Onde estão seus panelaços a favor de uma Reforma Tributária que taxasse as grandes fortunas? Onde estão seus panelaços para que se regulamente a mídia? Onde estão seus panelaços por educação e saúde públicas de qualidade? Cabe, obviamente, a ressalva: nas manifestações de rua contra o golpe, há muitos segmentos outros de classes médias e populares que estão sensíveis a tais questões mais abrangentes.

E…o governo dos Estados Unidos?

Seus interesses são os que não aparecem, vergonhosamente ocultados pela grande mídia, tentando desvincular a crise interna da externa. Enquanto, em várias partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos, se denuncia o golpe no Brasil, o governo norte-americano se cala. Mas o Panama Papers acabou explicitando muito além das denúncias de corrupção: é sintomático que, na lista de corruptos, não apareçam nomes e empresas norte-americanos e apareçam nomes como Putin, o presidente da África do Sul e um dirigente chinês. Dos países do BRICS, só não aparece Dilma. Vamos por partes. Primeiramente, é o caso de se perguntar da “incorruptibilidade” norte-americana quando se sabe do escândalo da FIFA e o envolvimento de empresas como a Nike, investigadas pelo FBI. Em segundo lugar, está escancarado o interesse norte-americano no Pré-Sal brasileiro, como parte do confronto dos EUA com a Rússia e a China, de que houve inúmeros acontecimentos sintomáticos por volta de outubro-novembro do ano passado.

Tanto há vínculos dos golpistas com o governo norte-americano que, logo no dia seguinte ao golpe, o capacho do Aloysio Nunes embarcou para os Estados Unidos para se avistar com autoridades estadunidenses e comunicar que o golpe não era golpe.

Tudo isto está envolvido no golpe. Trata-se, em síntese, de um processo de extensão e aprofundamento da rapacidade capitalista e dos seus agentes. E isto implica, para variar, em intensificar a exploração contra as classes trabalhadoras.

No golpe circense do dia 17 de abril de 2016, que nos tornou o escárnio do mundo, o espetáculo se revelou. Verbalizou-se. Escancarou-se. Pelas medidas anunciadas pelos usurpadores, a burguesia sinaliza que quer vir com tudo.

A resposta é apenas uma: mobilização popular. Isto não está acontecendo apenas no Brasil. A luta é o caminho para barrar a voracidade da exploração capitalista, antes que ela destrua a Humanidade.

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